quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Amarelo e bonina


[...]"Irene mal acredita no que ouve, aquele homem, Nem-ninguém ou Curumim, seja lá como se chame , quer levá-la a passear! não tem vergonha de andar com mulher -dama na rua!, já despe o vestido verde,escolhe cor de bonina,quase novo,pouco usado,guardado como promessa de alguma coisa melhor que o dia-a-dia cinzento em que vive há tanto tempo, desde que pegou a doença e foi perdendo a esperança , pinta-se, não como sempre, para enganar os fregueses, mas de leve , cores claras como da primeira vez, no dia em que ficou moça e foi para a festa da igreja pensando em ver Romualdo,ai, saudade,Romualdo! onde andará Romulado?
Rosálio oferece o braço, onde a mulher pousa de leve a mão que brilha com as unhas pintadas cor de bonina como o vestido, e é ela quem vai guiando, quem sabe mais da cidade, vão no rumo da estação, que depois há um parque ainda deserto a esta hora, onde o sol, furando as árvores, salpica pelas calçadas poças de luz amarela[...]"

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Cinzento e Encarnado


"Das fomes e vontades do corpo há muitos jeitos de se cuidar porque, desde sempre, quase todo viver é isso, mas agora, crescentemente, é uma fome da alma que aperreia Rosálio, lá dentro, fome de palavras, de sentimentos e de gentes, fome que é assim uma sozinhez inteira, um escuro no oco do peito, uma cegueira de olhos abertos e vendo tudo o que há para ver aqui , nenhum vivente , nem formiga ,um cheiro de nada, as paredes ressecadas tábuas cinzentas, os montes de brita e de areia ,cinzentos , a enorme ossada de concreto armado , sem cor , os edifícios proibindo qualquer horizonte, um pesado teto cinzento e baixo ,tocando o topo dos prédios , chapa de nuvens de chumbo que não se movem, não desenham pássaros ,nem ovelhas , nem lagartos, nem caras gigantes ,não trazem nenhum recado,e isso é tudo o que há para se ver, sem conhecer nem nascente nem poente , nem manhã nem tarde , tudo tão aqui,tão perto que a vista logo ali bate e volta, curtinha,sem se poder estirar mais longe, nem para fora nem para dentro , revolteando como passarinho há pouco engaiolado , afogando- se em cegueira. Tudo tão nada que Rosálio nem consegue evocar histórias que o façam saltar para outras vidas, porque seus olhos não encontram cores com que pinta-las.Fome de verdes , de amarelos, de encarnados.”
(Rezende,maria valéria.O vôo da guará vermelha,cpI,pg11)